CLARISSA
Lilypie Baby Ticker

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Uma doença chamada “guardar”. (o post é longo, paciência...)

Pois é,


"Ao Jorge, num dia feliz.

Zuleika

Livramento, 3-X-1947"


Se bem me lembro, peguei esse vírus ainda bem criança. E é um vírus que te deixa um vício incurável. Guardar, guardar, guardar... Tudo, tudo, tudo de tudo.

Os que são imunes ao vírus não fazem idéia das coisas que um viciado nessa doença é capaz de guardar ao longo da vida. Como tive uma infância feliz, pois naquela época não existia televisão, Xuxa e muito menos computadores e internet, nossas brincadeiras eram, via de regra, do tipo self made. Carrinhos de lomba, pandorgas, subir em árvores, polícia e ladrão, corridas de carrinhos de plástico, cheios de areia pra dar peso e puxados por uma corda (lembro até hoje do Karmann Guia incrementado que eu tinha). Isso quando eram carrinhos; no mais das vezes eram latas de leite em pó com um cordão e que saíamos puxando como se fossemos os Sennas da época.

Outra das grandes brincadeiras eram as coleções. E é daí que vem a doença. Cresci vendo meus irmãos mais velhos fazendo coleções. Principalmente de carteiras de cigarros. Como diriam hoje, era o must da época. Como eu era “pequeno”, não podia fazer. Carteira de cigarro importado, putz, o cara que conseguia virava o herói da turma. Ninguém explica a memória, mas ta lá, guardada, a lembrança de uma carteira de Parliament que meus irmãos tinham. Filtro vazado na ponta. Era o máximo. A coisa chagou a tal ponto que inventaram a famosa frase, ao menos pra quem tem mais de 40: “Quetal Presidente, Tufuma Hollywood?” Só marca de cigarro.

E eu ali, sendo infectado pelo vírus sem saber. Sobravam para mim os álbuns de figurinhas. Mas já naquela época a divisão em castas intrafamiliares existia. Álbuns de adolescentes e álbuns de crianças. Algo como CD da Xuxa e CD do Hot Dog Xis e Pepsi, hoje em dia. Foi uma das poucas coisas que não guardei. Meus álbuns de figurinhas. Pois até o diploma do Jardim de Infância eu tenho guardado.

O que importa é que o vírus tomou conta e, alguns anos mais tarde, quando pude ao menos mandar no meu nariz, comecei a guardar coisas. A lista é enorme. É mais fácil dizer do que eu não fiz coleção ou o que eu não tenho guardado. Selos, por exemplo. A mais tradicional das coleções nunca me atraiu. De resto tenho de tudo. Verdadeiro bric-à-brac. Caixinhas de fósforos, moedas, chaveiros, canetas (a única que ainda mantenho), times de futebol de botão, etc...

Se o vício se limitasse às coleções não seria nada. O pior é que a mania de guardar se estende aos papéis. Tenho cadernos do tempo do ginásio, passando pelo científico e pelas faculdades. Milhares de papéis e livros. Só de caixa-arquivo já cheguei a ter 50. Pensei até em contratar uma arquivista para organizar tudo. Depois, pensei melhor e tomei a decisão mais correta: está indo tudo pro lixo.

É, minhas férias estão virando uma festa pros papeleiros que passam na minha rua. E mesmo assim ainda vão sobrar umas vinte caixas e algo em torno de mil livros.

Mas o mais difícil, e é aqui que queria chegar, é ter que se desfazer de tudo. Dói! E dói muito ver todas aquelas coisas inúteis serem jogadas fora. Dói decidir o que pode ser inútil em meio a toda uma meia vida, supondo, claro, que eu vá vivê-la inteira pelos padrões atuais.

Sabe aquele bilhetinho da namorada dos quinze anos? Trinta e dois anos depois, que importância tem? Não sei se muita ou nenhuma. E aí fica difícil decidir: vai ou não vai?

Foi aí que peguei uma edição argentina do Martin Fierro de 1944, capa de madeira talhada à mão. Abri e me deparei com a dedicatória que abriu o post. Foi um presente da minha mãe para o meu pai no dia do seu aniversário. Ainda eram namorados.

Se alguém tivesse jogado fora, ou eu não tivesse a doença de guardar tudo, como eu poderia saber que aquele dia foi “um dia feliz”?. Meu pai já morreu e minha mãe sofre de Alzheimer, sequer lembra quem eu sou. Mas teve, na vida, aquele dia feliz. E agora eu sei que teve. E se eu não tivesse guardado o livro? E se eu não guardar todas as coisas? E ela, será que lembra?

Ele se foi e ela se vai. E ficou o livro. Teria feito diferença se o livro tivesse ido também? E agora, fará diferença se ele se for?

Guardei por trinta e dois anos a raquete de tênis que era do meu pai. Foi pro lixo. Guardei a flâmula que ele ganhou quando saiu do comando do 3º Regimento de Cavalaria, em 1972. Fiquei com ela, vou pendurar na parede.

Devo estar no limiar entre essa e a outra. Só que a outra, por enquanto, é ir pra Cumbuco. Jogar tudo no lixo e ficar numa cabaninha...eis a questão.