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quinta-feira, abril 21, 2005

Morrer seis vezes

Pois é,

"Dito foi do grande philosopho Heraclito, allegado e celebrado por Socrates: Non posse quemquam bis in eumdem fluvium descendere: que nenhum homem podia entrar duas vezes em um rio; e porque? Porque quando entrasse a segunda vez, já o rio, que sempre corre e passa, é outro. E d'aqui infiro eu, que o mesmo succedera se não fôsse rio, senão lago ou tanque aquelle em que o homem entrasse; porque ainda que a agua do lago e do tanque não corre, nem se muda, corre porém, e sempre se está mudando o homem, que nunca permanece no mesmo estado: Et nunquam in eodem statu permanet. Assim o disse Job, e quem o não disser assim de todo o homem, e de si mesmo, não se conhece. Admira-se Philo Hebreu, de que perguntando Deus a Adão onde estava: Adam, ubi es? elle não respondesse. Mas logo escusa ao mesmo Adão, e a qualquer outro homem a quem Deus fizesse a mesma pergunta, por que como póde responder onde está, quem não está? Se dissera, estou aqui (como subtilmente argue Santo Agostinho) entre a primeira syllaba e a segunda já o estou não seria estou, nem o aqui seria o mesmo logar; porque como tudo está passando, tudo se teria mudado. Por isso conclue o mesmo Philo, que se Adão houvesse de responder propria e verdadeiramente onde estava, haveria de dizer: nusquam, em nenhuma parte; porque em nenhuma parte está aquillo que nunca está, mas sempre passa: eo quod humana res nunquam in ordem statu maneat.

Considerando este continuo passar do homem (não fóra de si, senão onde verdadeiramente parece que está e permanece, que é dentro de si mesmo) diziam os sábios da Grecia, como refere Eusebio Cesariense, que todo o homem que chega a ser velho, morre seis vezes. E como? Passando da infancia á puericia, morre a infancia; passando da puericia á adolescencia, morre a puericia; passando da adolescencia á juventude, morre a adolescencia; passando da juventude á edade de varão, morre a juventude; passando da edade de varão á velhice, morre a edade de varão; e, finalmente, acabando de viver por tanta continuação e sucessão de morte, com a ultima que só chamamos morte, morre a velhice."

Padre Antonio Vieira, Sermão da Primeira Dominga do Advento. Mantive a redação do original das Obras Completas do Padre Antonio Vieira, Livraria Lello & Irmão editores, PORTO, 1945.

E mesmo assim insistimos em querer que as pessoas não mudem. Acusamos, inclusive, quem muda: "não eras assim quando te conheci!", como se cometessem o maior pecado do mundo. É como disse Job: não nos conhecemos; que dirá conhecer algo que está em constante mutação. E nos arvoramos no direito de dizer "eu te conheço bem, sei como és!".

Talvez o Gejfin e a Aninha tenham razão quando pretendem ser líquidos e não sólidos ou gasosos. Talvez queiram aceitar, primeiro em si mesmos, depois nos outros, a mudança, a fluidez do rio.

Quando crianças, nos perguntam o que queremos ser quando crescermos. A partir daí inicia-se uma cobrança que só irá parar com a última das seis mortes. Educar é colocar limites, dizem os entendidos no assunto. É tornar sólido algo que nasceu líquido. E depois, na "edade de varão", gastamos fortunas buscando retornar ao estado de liquidez. Tudo que que fazemos se reduz a essa busca: trabalho, relacionamentos, amizades, lazer. E em tudo isso nos empurram para o lado sólido da existência. No trabalho temos de nos comportar sempre da mesma maneira; nos relacionamentos devemos ser tão previsíveis quanto um cubo de chumbo que, se solto, certamente irá ao chão; os amigos nos cobram pelo nosso jeito de ser: "fulano é assim, beltrano assado! O Afonso é assim mesmo, não dêem bola!". Definem. E o que é definir senão tornar sólido?

E é dessa tentativa de solidificar o que é líquido que nasce a crítica. Criticamos a tudo e a todos por não se enquadrarem nos rígidos (sólidos) padrões estabelecidos. Criticamos o papa que morreu e o que foi eleito; criticamos o presidente que se foi e o que foi eleito; criticamos a arte, a literatura, a opinião das pessoas, a música, os argentinos, é quase só o que tenho lido por aí: crítica e mais crítica, a tudo e a todos. Rótulos, limites, definições, enquadramentos. Eu não fujo à regra e isso tem me chateado.

E por não fugir à regra, devo me policiar constantemente, pois trabalho com pessoas nas organizações e só o que ouço é "fulano é um incompetente, faz tudo errado", "a culpa foi do betrano" e tantas outras. Por outro lado, uma das coisas mais difíceis do meu trabalho é mostrar para as pessoas que podem mudar, que podem fazer as coisas de forma diferente, sair da zona de conforto (sólido) e arriscar (líquido).

É o que dá feriado numa quinta-feira.



Comentário aos comentários (sugere-se a leitura destes, antes, para uma melhor compreensão)

23:15 - Certos comentários merecem um post.

Não costumo, Luma, utilizar a expressão “crítica construtiva” quando me refiro a alguma análise que seja construtiva para alguém. Na Administração usamos uma expressão que julgo mais adequada: feedback, cuja tradução não poderia ser mais feliz: retroalimentação. Alimentar, isso sim é construir. Quando queremos ajudar alguém a construir devemos dar a ela alimentos, realimentá-la. Crítica tem um significado, para mim é claro, sempre negativo. Segundo a teoria gejfiniana da liquidez (olha a cara de pau: já estou dando interpretações para algo ainda nem bem formulado, hehehehe) criticar significa solidificar; retroalimentar significa liquefazer, pois dá a pessoa a oportunidade de fluir para outra posição, coisa difícil de se fazer quando se é sólido.

E Gejfin, pensei bastante antes de colocar a palavra gasoso junto com sólido. Numa primeira versão, pensei ser muito fácil simplesmente associar o nível de desagregação das moléculas com um sentido de evolução. E sabe por quê? Porque o gasoso me lembra aquelas pessoas que costumam “ocupar todos os espaços disponíveis”, inclusive o espaço dos outros. E isso é ruim. Num relacionamento afetivo, então, nem se fala, deve ser a principal causa dos rompimentos: um sempre ocupa o espaço que deveria ser ocupado por dois. Coisas de gente gasosa (dá uma olhada nesse post do Pras Cabeças, um belo exemplo de ser gasoso). Por essa razão fiz, pensadamente, a oposição. De mais a mais, se pensarmos assim, chegaremos ao plasma e, logo, logo, seremos fantasmas... Mas é uma primeira versão, sujeita a revisões.