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domingo, maio 29, 2005

As origens do mundo, da humanidade e do Afonso - III / VII

Pois é,

"Deus disse: 'Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente' e assim se fez. Deus chamou ao continente 'terra' e à massa das águas 'mares', e Deus viu que isso era bom.
"Deus disse: 'Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem semente e árvores frutíferas que dêem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente' e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia
".

Daí se dizer que os frutos não caem longe do pé; que quem sai aos seus não degenera; filho de peixe, peixinho é.

Pois vivi mais de quarenta anos sem saber a história da árvore frutífera da qual sou fruto com sementes. Mais tabus familiares.

O vilarejo da foto é a origem da família por parte de pai. Saint Jean le Vieux. São João, o Velho (ou Donazaharre, em Euskara, a língua basca). Fica no País Basco, porção francesa (Também conhecido como Iparralde). Sim, sou basco de origem e de sangue. Terceira geração no Brasil. Só não me decidi, ainda, se entro pro ETA (Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade) até porque, nesses tempos de antiterrorismo pode ser perigoso. Vá que algum americano resolva implicar comigo e dizer que algum antepassado, lá do sec. XVIII, já tinha tendências... (farrapo por parte de mãe e basco por parte de pai. Sempre achei a mistura explosiva...)

Saint Jean le Vieux fica a 4 Km de Saint Jean Pied du Port, porta de entrada do mais tradicional "Caminho de Santiago" (o site tem muitas fotos belíssimas). SJLV já foi acampamento de uma guarnição militar romana, do séc. I d. C. - Immus Pirenaeus - e até hoje possui as suas ruínas.

Pois se vocês notarem, bem à direita tem uma casa1 onde aparece um risco azul. É, essa casa foi terminada, em 1812, pela primeira pessoa neste mundo a carregar o sobrenome Escosteguy. Um fato interessante é como surgiu o nome. Naquela época era comum que as casas fossem referenciadas pelo nome do dono, ou pelo nome da profissão do dono, ou, ainda, por algum acidente geográfico. Teguy é a versão francesa do basco Tegi, que quer dizer "casa". Assim, Escosteguy significa a "casa do senhor de Escos". Jean de Escos deu ao seu primeiro filho, em 15 de setembro de 1772, o nome de Charles. Como Charles era da casa do senhor de Escos, foi registrado como Charles Escosteguy, nascendo, aí, o nome da família, até então apenas o nome da casa. A foto abaixo é da certidão de batismo desse Charles, tirada de um microfilme existente em Bayonne.


Pois se alguém permanceu até aqui sem tirar definitivamente o Chato dos "favoritos", ou da lista de blogs amigos, fique pasmo ao saber que em mais de 138 anos de história da família no Brasil (o primeiro Escosteguy - neto do Charles - chegou ao Brasil em 1867. Chamava-se Pierre Escosteguy, ou o Velho Pedro - Pierre le Vieux, como o chamamos) ninguém sabia disso. Coube a mim resgatar toda uma história abandonada em meio a quase cem anos de brigas que separaram a família. E num memorável encontro, realizado em 2001, onde buscamos superar todas as discórdias do passado. Mais do que dar a mim mesmo uma origem, trouxe a todos o sentido de que viemos de um só casal. O Adão e a Eva da minha família.

A história da minha família era um tabu. Nunca ouvi meus pais falarem no assunto. Sabia apenas, à boca pequena, de histórias de brigas. Meu avô, então, falava menos ainda, pois ele participou da Segunda Grande Cisão. E da primeira também (se bem que nessa, era um adolescente e foi conduzido pelas mãos do irmão mais velho, com quem brigaria na IIGC). É, essa história é a história do século XX: duas grandes guerras. Para se ter uma idéia, meu avô teve que ir escondido ao enterro da própria mãe, minha bisavó. Um dos meus tios se recusa, até hoje, a andar na mesma calçada por onde esteja passando algum dos primos.

Cresci assim, sem história. Mas o post não é para contar a minha história. Essa história é apenas um pano de fundo. É para falar das "árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo suas sementes". E de como é importante a gente saber que é fruto de um fruto de um fruto ...

Por vezes me pergunto: será que Charles Escosteguy imaginava que sua família duraria tanto tempo? Será que ele tinha noção de que colocar um filho no mundo é mais do que perpetuar a espécie? Que é dar aos seus descendentes uma raiz? Que quase duzentos e quarenta anos após, um tatataraneto viria a descobrí-lo? Eu imagino isso pra daqui a trezentos anos? Ainda hoje me pergunto por que fui eu a descobrir toda a história da família. Será que eu sei que sou, também, uma raiz?

Dei para minha filha aquilo que meus pais não me deram: uma raiz, uma manhã. E finalmente, no meu terceiro dia, eu tive uma tarde, e também tive uma manhã.

1A casa existe até hoje e tem, em cima da porta da frente, o nome Escosteguy esculpido e uma data: 1812.