CLARISSA
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sábado, março 19, 2005

Julgar

Pois é,

Julgar não é fácil, embora seja a coisa que mais fazemos. Julgamos a tudo e a todos a todo momento. Das profissões jurídicas, a que menos me atrai é a de juiz. Meu estômago não saberia ser imparcial. Não saberia “compulsar os autos” (expressão do juridiquês) apenas sob a ótica da lei. Ali há vida, há pessoas que dependeriam do meu discernimento, do meu julgamento.

Nos treinamentos que faço para os colegas novos, insisto sempre que a eficiência no serviço público é determinada não porque um chefe quer ou a lei manda, mas porque cada folha papel que entra na instituição traz a digital de alguém que precisa da nossa atuação. Demorar para despachar um procedimento significa causar uma demora na vida de alguém, um prejuízo qualquer. Processo e vida andam juntos. Não temos o direito de, pela nossa preguiça ou por qualquer razão que seja, fazer isso.

Pois essa semana tive minha estréia como “juiz” oficial. Fui convidado para ser membro da comissão que avalia os servidores em estágio probatório. Para quem não sabe, ou não lembra, uma breve explicação: a Constituição Federal determina que todo servidor seja avaliado, periodicamente, ao longo dos três primeiros anos de exercício, a fim de determinar se apresenta as condições exigidas para permanecer no cargo, isto é, tornar-se estável. Findo esse período, e com base nas avaliações, a comissão julga, emite um voto pela permanência ou não do servidor.

Aceitei, pois era uma experiência que faltava no meu currículo. De imediato sou “brindado” com um processo de 672 páginas. Evidentemente, não era normal. Problemas muito sérios deveriam estar relatados ali. Tremi. Julgaria, mas também estaria sendo julgado? Mal sabia que o pior, em termos de experiência, viria depois.

A técnica, em si, é bastante simples: leitura atenta e anotação dos fatos importantes. Quanto a isso não estava preocupado, pois estou acostumado a fazer análises e relatórios. Li tudo e formei meu juízo. Escrevi o voto e fui para a reunião da comissão.

Ao entrar na sala, percebi um clima tenso, ao qual contribuí com minha própria tensão de neófito. Inexperiente, pensei que simplesmente cada um leria seu voto e pronto. Nisso, o presidente da comissão manda chamar o servidor que estava sendo avaliado. Confesso que tive vontade de desistir ali mesmo. O servidor, no caso uma servidora, entrou acompanhada do seu advogado. Sentou-se ao meu lado. Seiscentas e setenta e duas páginas, naquele momento, tomaram forma de uma pessoa. Milhares de palavras passaram a respirar, a olhar, a esfregar as mãos, a suar.

E então – e só então - começou a luta. A minha luta. Não há como evitar. O relator inicia a leitura. Relatório e voto. Detalhe por detalhe. Boa aqui, ruim ali; incompetente nisto, mais ou menos naquilo. Apresenta bom relacionamento, mas é irresponsável. Erros de português; falta de conhecimento; incapaz de realizar um mínimo que seja, e por aí vai... Não estou escrevendo exatamente o que constava no processo. É muito pior. Começo a me sentir mal. Sinto como se as palavras estivessem sendo dirigidas a mim. Como alguém pode ficar escutando, impassível, tamanho derramamento de adjetivos simplesmente destrutivos?

Não sei o que faria se alguém me dissesse que sou um “profissional abaixo de qualquer crítica”. Gostar do que alguém escreve é uma coisa, outra é dizer que esse alguém não consegue expressar uma idéia em um parágrafo.

O advogado da defesa pede a palavra e, inteligentemente, ressalta apenas os aspectos positivos. Uma ode à cliente. Experiente e dono de uma oratória impar, convenceria qualquer um.

Cresce a sensação de que vou gaguejar na hora de ler o meu voto. Tanto por ser a primeira vez, e por me sentir também em julgamento, quanto por estar ao lado da pessoa. Respiro fundo, o mais discretamente possível para que os colegas não percebam. Sei que isso é impossível. Não nos vemos como os outros estão nos vendo. Assim como percebo os sinais nos outros, certamente eles perceberam os meus. Pouco antes da minha hora, peço licença e vou ao banheiro. Aí sim, respiro escandalosamente. Repito algumas vezes: técnica, meu caro. Profissionalismo. Estás aqui como uma entidade: servidor público. Teu dever é defender o contribuinte, que é quem, ao final das contas, paga o teu próprio salário.

E técnica significa não olhar nos olhos. Significa que tenho, ao meu lado, apenas 672 páginas de papel. Nada mais. E que um dia serão recicladas ou virar bloquinhos para rascunho. Espero que ela se recicle também. Após três horas de reunião, me reciclei.