CLARISSA
Lilypie Baby Ticker

sábado, março 19, 2005

Se não estava decidido, agora está!

Pois é,

Sábado intimista. Veja o post anterior.

Esse segue a mesma linha. Conversar com a minha mulher já não é mais suficiente, embora a lucidez das opiniões dela. Parece que escrever alivia um pouco. Aí o blog assume aquela característica que os "entendidos" tanto criticam: a de ser um diário de um adolescente. Não importa.

Nos últimos doze meses venho pensando profundamente em abandonar de vez o Direito. Prós e contras. Ora prós, ora contras. A cobrança é diária, mais em função da legitimação que o diploma dá, do que pelo conjunto de conhecimentos e experiências acumuladas. Afinal, tem-se por norma que um juiz, um promotor ou um advogado, por serem formados, são gente "que sabem das coisas", mesmo que não saibam nada.

Uma das constantes brigas com a Kaya (a esposa, advogada, secretária de juiz, atualmente) é a visão que temos do Direito. Ela, pragmática. Aqui e agora. Caso concreto. Ou dá, ou desce! Pagou, pagou; não pagou, créu! Sentença nele. Eu, teórico. Qual Don Quixote, sempre procurei isolar o Direito da sua prática cotidiana, no que ela sempre me critica, dizendo que nos livros e nas universidades tudo é possível. Ela, processo; eu, doutrina. E vivemos felizes.

Brinco com ela dizendo que, na realidade, ela é uma gari do Direito. Trata com o lixo da espécie humana que chega aos juizados e tribunais. Nisso concordamos, não há brigas.

Sou geminiano. Acredito ou desacredito da espécie humana conforme os acontecimentos. O tempo não é a minha medida; os acontecimentos sim. Por isso estranham que possa mudar a cada cinco minutos. Depende do que eu fico sabendo.

Pois agora fiquei sabendo de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que, segundo voto da ministra Laurita Vaz, considera que "a conduta praticada pelo réu deve objetivar a destruição ou o rompimento do óbice que dificulta a obtenção da coisa. Assim, se o réu pratica violência contra o próprio objeto do furto, sendo o obstáculo peculiar à coisa, não ocorre a incidência da referida qualificadora".

Traduzindo: o cara, para roubar o carro, foi obrigado, naturalmente, a quebrar o vidro. Como o vidro "É, PERTENCE", ao carro, não se caracteriza a qualificadora, isto é, é apenas um furto simples, que não merece pena maior.

O lado da balança do contra foi ao chão de tão pesado. Sigo lendo a notícia e vejo que outro ministro, Felix Fischer, segundo a minha visão de mundo, votou favoravelmente à qualificadora, in verbis:

"entendimento no sentido de que o rompimento ou a destruição de obstáculo – ainda que este seja inerente à própria coisa objeto da subtração – qualifica o delito de furto [qualificado]. [...] Em primeiro lugar, porque o legislador em momento algum restringiu o conceito de violência aos casos em que o rompimento ou destruição seja em relação a obstáculos exteriores à ‘res furtiva’."

"Em segundo lugar," continua o ministro, "se eventualmente aceitássemos a idéia de que a violência, para qualificar o furto, não pode ser exercida em detrimento do próprio objeto da subtração, mas sim em face de obstáculos exteriores à coisa, nos depararíamos com uma situação no mínimo curiosa, qual seja: o furto de uma bolsa, situada no interior de um veículo, com a destruição do vidro do motorista, p. ex., qualificaria o delito, mas, em contrapartida, se o objeto da subtração fosse o próprio veículo, estaríamos diante de um furto simples. E tem mais! E se o objeto do furto fosse o próprio veículo, mas com a bolsa em seu interior? O agente responderia por furto simples, como sustenta parte da doutrina? Claro que não! [...] Dessa maneira, percebe-se, até mesmo ‘à vol d’oiseau’, a inversão de valores no tratamento dessas situações, mencionadas a título ilustrativo, que ferem não só a lógica jurídico-penal, mas também o bom senso do ‘homo medius’. Afinal, não há razão para tal distinção, uma vez que a própria lei não faz qualquer ressalva."

"Em terceiro lugar, pergunta-se, ainda com base nas exemplificações supra, em qual das situações a ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma legal foi maior? Evidentemente que na subtração do veículo (com ou sem a bolsa em seu interior). No entanto – consoante parte da doutrina e da jurisprudência –, mesmo a lesão tendo sido flagrantemente maior nesta situação, o agente responderia por furto simples, ao passo que, na primeira hipótese (furto da bolsa mediante a quebra do vidro do veículo), em que a lesão ao bem jurídico foi menor, o agente estaria incurso no delito de furto qualificado. Esta, evidentemente, não é a ‘mens legis’", segue o ministro.Conclui em seu voto, negando provimento ao recurso, que, "não se argumente, em uma visão extremamente liberal, ainda com base nos exemplos mencionados, que o furto, em todos os casos, seria simples, a fim de se evitarem desfechos discrepantes. Ora, esse entendimento, além de fazer uma equiparação não escudada em lei, resulta em uma interpretação, isso sim, ‘contra legem’. Afinal, [onde a lei não distingue, nós também não devemos distinguir]."

O STF (Supremo Tribunal Federal) "a despeito de ementa aparentemente contraditória, adotou o entendimento aqui defendido, i.e., de que pouco importa que o obstáculo ‘vilipendiado’ seja exterior à coisa objeto do furto", completa."
(http://ultimainstancia.ig.cob.br/noticias)



A ilustre ministra certamente nunca teve seu caro furtado, ou sequer ameaçado de furto. Vivem guardadas, ela e suas propriedades, por seguranças ou, no mínimo, motoristas. Aí fica fácil dizer que o vidro, por pertencer ao carro, não constitui obstáculo que justifique a aplicação da qualificadora. Um vidro custa R$ 53,00 (faz pouco tive que trocar o meu, exatamente por causa de um desses que a ministra acha não merecer pena maior). Que lindo. Será que a ilustríssima não sabe que mais vale a pena gastar R$53,00 para roubar um carro que custa mais de R$20.000,00?

Se já, intuitivamente, desconfiava que o Judiciário brasileiro vivia num mundo diferente do meu, agora tenho certeza. E que não se pense que foi apenas isso. É a velha gota d'água.

Quando será, por Deus, que essa gente vai descer do Olimpo e olhar para a vida? As defesas são um primor, como teses. Dígnas de papers em todas as revistas especializadas; cases para estudo em todas as faculdades de Direito.

E daí? Desculpem a expressão, mas enquanto essa gente fica se masturbando com a teoria do Direito, tentando mostrar que é melhor que o colega, o cara do carro "si fudeu". E nem sequer a compensação de ver o bandido preso com qualificadora vai poder ter. E por quê? Porque uma ministra resolveu simplesmente - e chega por aí, antes que diga besteira - escrever uma tese de Direito para "aparecer" perante a comunidade jurídica, seus pares.

Esse foi um caso. Como disse, no último ano tenho colocado milhares na balança. Era de se esperar que algum entornasse o caldo.