As origens do mundo, da humanidade e do Afonso - V / VII
Pois é,
"Deus disse: 'Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as árvores voem acima da terra, sob o firmamento do céu' e assim se fez. Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom. Deus abençoou e disse: 'Sede fecundos, muluiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra'. Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia".
Dizem que há males que vêm para bem. Sei lá, mas a quase cegueira fez com que eu passasse a usar óculos. Os mesmos óculos que, alguns anos mais tarde, viriam a salvar meus olhos de outra possível cegueira. Copa do Mundo de 1970. Jogo contra a Tchecoslováquia (ou será Tchecoeslováquia? Nem lembro mais!). Um amigo resolve jogar um foguete na hora do primeiro gol do Brasil. Advinhem onde foi parar? Pois é, no meu rosto. Salvei-me de ficar cego porque as lentes protegeram meus olhos. Os óculos ficaram queimados, além de parte do meu rosto. Mas os olhos não. Talvez por isso valorize tanto a visão. Se São Pedro me perguntar qual o dom da vida que eu mais valorizo, respondo sem pestanejar - e sem trocadilhos: a visão. Não saberia ser cego. Não saberia não ver as cores, as formas, a luz e a escuridão. Sim, mesmo a escuridão, pois ela só tem valor diante da luz que sabemos virá.
Depois desse fato, ocorrido numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul onde estava morando, voltei para Brasília. Quatorze de novembro de 1972, véspera das eleições. Esse dia marca um nascimento. Nesse dia meu pai morreu.
Às dezenove horas toca a campainha da minha casa. Foram chamar minha mãe. Meu pai tinha passado mal fazendo exercícios na ginástica. Não havia porque se preocupar. Era um mal estar, mas seria bom que ela estivesse junto no hospital.
Meia hora depois, um amigo da família vai me buscar. Afinal, eu era o "homenzinho" da casa. Meus irmãos mais velhos tinham ficado em Porto Alegre. Minhã irmã tinha apenas 8 anos. Talvez ele não conhecesse a história do gato que subiu no telhado, ou talvez a dureza da vida militar o tenha ensinado que cabia aos homens "serem fortes" nessas horas. Sem mais nem menos, em meio ao caminho do estacionamento, foi logo contando: "teu pai já morreu. Não contamos ainda para tua mãe. E nem vais dizer nada para ela até que os médicos autorizem".
Não senti nada. O que poderia sentir um piá de quinze anos que nunca tinha visto a tal da morte de perto? Não sabia o que aquilo representava. Lembro-me de ter passado o tempo até chegar no hospital com um único sentimento: o que devo sentir? O que se sente nessas horas? Claro que, misturado a isso, haviam as "ordens": és o homenzinho da casa, homem não chora, mesmo que saibas, não podes contar para tua mãe (juro que até hoje não entendo o por quê disso).
Chegando no hospital vi minha mãe completamente dopada. Enfiaram um monte de calmantes nela e, literalmente, até às onze horas, foram matando meu pai aos poucos para ela. E eu já sabia de tudo e não podia fazer nada. Aliás, não sabia o que fazer. "Estamos tentando", diziam vez por outra. Ela queria vê-lo e não deixavam. E eu ali, sem saber o que fazer, sem saber o que pensar. Sentia apenas a angústia de ver minha mãe daquele jeito e não poder fazer nada. Eu era o homenzinho da casa mas não tinha os poderes correspondentes.
Finalmente, às onze horas resolveram contar. Lembro até hoje da cena: entramos numa das salas do hospital, sentaram minha mãe numa cadeira e eu fiquei em outra, ao lado. O médico contou aquilo que ela, por mais dopada que estivesse, já deveria saber. A reação foi de raiva por não terem falado desde o início. Ainda tentaram disfarçar, justificando que estavam fazendo de tudo para salvá-lo e as baboseiras todas. Foi aí que explodi e falei pra ela que era tudo mentira e que eu já sabia desde o início, mas que não me deixavam falar. Coração. Aos 46 anos.
Hora das formalidades: identificação do corpo. Tive que ir eu, pois minha mãe não tinha condições e, afinal, eu era o homenzinho da casa. Pela primeira vez vi um cadaver; pela primeira vez toquei num cadaver; pela primeira vez beijei um cadaver. E pelo que me lembro, foi uma das poucas vezes que beijei meu pai, nos quarenta e seis únicos anos da vida dele.
Voltamos pra casa e os deveres de homenzinho continuaram. Queriam contar para minha irmã. Não! Falei. Eu conto! Chegando em casa, sentei com ela no sofá e contei. Claro, se nem eu entendia, menos ainda uma criança de oito anos. Mas cumpri minha tarefa de homenzinho da casa. Depois fui telefonar para a família. Meus irmãos em Porto Alegre; meus tios em Livramento e todo o resto da família que morava lá. Meus tios contariam para meus avós, pais dele.
Não era hora de chorar. Preparativos para a viagem do dia seguinte. Meu pai seria enterrado em Livramento. O Exército fretou um aviãozinho de oito lugares. Tiraram quatro bancos e colocaram o caixão ali. Nós fomos com os pés encima do caixão, pois não havia espaço. Oito horas de viagem de Brasília até Livramento, com paradas. Eu, minha mãe, minhã irmã e o médico que a acompanhava.
Velório na casa dos meus avós. No dia seguinte não queriam me deixar ir ao enterro. Nessa hora já não era mais o "homenzinho". Claro que armei o maior barraco. Fui. Quem já viu sabe: enterro de militar é muito bonito. Minha família é tradicional na cidade e meu pai destacado na profissão. Cortejo em carro aberto com o caixão coberto pela bandeira do Brasil; salva de tiros, hino nacional, discurso do comandante da guarnição, etc. Finalmente, talvez pela emoção da cena, sei lá, pude chorar. Quieto, no meu canto, pois homem não chora.
Em dezembro voltamos, eu e minha mãe, para Brasília. Fazer a mudança e as providências necessárias. Desses dias, a única coisa que me lembro é que estávamos lá no Natal. Como já tínhamos entregue o apartamento, ficamos, na noite de 24 para 25, no apartamento daquele casal de amigos que nos avisou da morte. A viagem definitiva seria no dia seguinte.
Estávamos só nós no apartamento, pois a família tinha viajado. Ficamos no quarto dos filhos, dois amigos meus. Mamãe sentada numa das camas e eu na outra. A noite inteira aquele silêncio. Era véspera de Natal. Lá pelas onze horas, pedi uma única coisa para minha mãe: mãe, posso ao menos tomar um copo de coca-cola? E chorei pela segunda vez naquele ano.
Ali, no quinto dia, houve uma tarde, mas havia perdido minha manhã.